Minha experiência com a Ayahuasca

Após refletir muito sobre o assunto e buscando compartilhar uma experiência pessoal a respeito de um assunto ainda "novo" por boa parte da população. Resolvi fazer esse post para que possa servir de "referência", mas já reforço e ressalvo que como todo indivíduo é um ser ímpar em suas singularidades, cada pessoa vivencia sua própria experiência de forma subjetiva e como bem disse Górgias (485 - 380 a.C.): “O ser não existe; se existisse, não poderia ser conhecido; mesmo que fosse conhecido, não poderia ser comunicado a ninguém”. Górgias acreditava que não existia uma verdade absoluta, chegando a conclusão sobre a ilusão gerada pelos sentidos. Dito isso, solta o sinto, vamos subir.


Seria possível descrever com os limites da linguagem uma experiência sensorial tão singular? Como  transmitir conhecimento de uma jornada tão pessoal com estranhos que talvez nem questionem suas próprias realidades? De que forma explicar algo que você só encontra ao olhar sem medo para dentro de si? Já deu pra sentir o tamanho do desafio nessas linhas iniciais né? Agora é sério, direto ao assunto.

Em meados de 2012 durante minha passagem pela especialização em Filosofia Da Religião em Sobral (CE), tive a oportunidade de junto com alguns colegas, participar de vivências religiosas das mais variadas vertentes, judaicas, cristãs, islâmicas, espíritas, budistas, africanas e étnicas (indígenas). Em junho daquele ano, um amigo havia nos falado da experiência dele com o Chá da Ayahuasca. Eu e os demais ficamos interessados, claro que com as devidas ressalvas e cuidados que a vida acadêmica proporciona, pesquisei e estudei antes de qualquer experiência. Claro, também ajuda o fato de que conheço meus limites e confio no meu discernimento que me impediriam de fazer parte de qualquer experiência que não considerasse plenamente segura.

Ficou combinado entre nós que iríamos a uma sessão especial para "não praticantes". Para quem nunca ouviu falar, a ayahuasca está presente há milênios na cultura de diversos povos indígenas nativos da região norte do Brasil e países fronteiriços com Amazonas e Acre. É uma bebida produzida a partir da combinação de um tipo de cipó com um tipo de arbusto que, ao ser tomada, produz um efeito psicoativo. Vale ressaltar que não se trata de nenhuma droga, o chá ayahuasca não tem DMT suficiente para ser declarado como tal, inclusive não consta na lista de drogas. Inclusive é importante deixar claro que a ayahuasca é fonte de vários estudos. Existem pesquisas sérias dando conta dos aspectos biomédicos da ayahuasca e seu grande potencial terapêutico antidepressivo e ansiolítico, assim como seu baixo risco à saúde física e mental. Veja aqui nesta palestra dada pelo Dr. Luis Fernando Tófoli, médico-psiquiatra e professor da Unicamp:


https://youtu.be/WqxFVmnGXgM

Antes de chegarmos ao centro na Ibiapaba onde eu e meus colegas iríamos ter nossa experiência com a ayahuasca, aprendemos em nossos estudos e em conversas com pessoas do Centro que ela é uma preciosa enteógena, termo para plantas capazes de alterar a consciência e induzir ao "estado xamânico ou de ancestral". O que apenas nos deixou ainda mais interessados, pois nos relatos que conseguimos, ao invés de dar aquela chacoalhada na sobriedade bem típica das substâncias psicodélicas, o que ocorre é uma ampliação da percepção e da capacidade de autoanálise, possibilitando acessar níveis psíquicos subconscientes. Particularmente, hoje posso dizer que é algo semelhante a uma meditação profunda, mas ainda mais além, é a possibilidade de acessar estados alternados de consciência. Posso dizer que é como se fosse ter duzentas sessões de terapia com o melhor terapeuta em apenas algumas horas.

Ainda para esclarecer mais sobre o chá. A ayahuasca sempre esteve inserida em um contexto de cerimônias e ritos sagrados. Tanto que hoje, no Brasil, seu uso é legalizado para fins religiosos e ainda temos o Dia da Cultura Ayahuasqueira comemorado no dia 24 de novembro, numa alusão ao dia em que foi estabelecida a Carta de Princípios das Entidades Religiosas Usuárias do Chá Hoasca, firmada no ano de 1991. Esse documento é um importante marco na história da institucionalização do uso da Ayahuasca no Brasil. Em terra tupiniquim existem 3 religiões surgidas no século XX que tornaram a prática mais conhecida por aqui: o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha. Todas são bastante sincréticas, combinando em diferentes doses elementos religiosos, passando pelo catolicismo popular, espiritismo indígena e a umbanda. Um aspecto geral que pode ser destacado é a ausência de proselitismo. Seus membros não saem por aí alardeando nem pregando suas crenças, comentando apenas quando são convidados a comentar sobre o assunto, tão pouco estão preocupados em "converter infiéis" para conseguir novos adeptos.

Contudo, os cultos envolvendo a ayahuasca não se limitam a 3 religiões. Hoje existem diferentes modalidades de consumo do chá que, embora também estejam dentro do território da espiritualidade, trazem novas interpretações e contextos. E foi para um desses grupos que nos dirigimos, a bordo de uma Kombi no melhor estilo Man at Work, fomos para um "centro" na Ibiapaba através de um soldado do Daime. Por uma questão de respeito à privacidade, nomes e endereços serão aqui preservados. Pelo mesmo motivo, não tirei fotos (se bem que a câmera do celular na época era uma b#$t@). Estarei usando fotos de outros encontros para ajudar a "ilustrar" o post e servir de referência.

Como já mencionei lá encima, cheguei ao "centro" através de um amigo da faculdade. Ele também havia chegado ao Centro através de uma outra pessoa. É princípio do grupo receber apenas quem seja conhecido de algum de seus membros. Até porque a experiência vivida ali envolve muita confiança nas pessoas ao seu redor. Uma preocupação com a segurança de cada um, com receber bem a todos e também em manter o foco no propósito espiritual dos encontros.


Logo quando chegamos fomos bem recebidos, pudemos conversar um pouco, onde aproveitaram o momento para nos "entrevistar" com foco no jejum. Antes de tomar o chá nos havia sido instruído que era preciso fazer um jejum especial: durante três dias nada de sexo, comida animal (nem ovo), bebida alcoólica, energéticos ou remédios. Posso falar por mim, segui à risca respeitando cada um dos itens.

Chegamos no final da tarde de sábado, passamos cerca de uma hora apenas conversando e aprendendo sobre o chá e o lugar. O local era realmente muito bonito, um sítio muito bem cuidado, amplo e bem localizado. No meio da propriedade ficava um tipo de construção que chamou muito minha atenção, era como uma mistura de salão e oca, bem arejado e espaçoso. Após esse momento ficamos aguardando mais algumas pessoas chegarem, não demorou muito e logo o lugar tinha por volta de umas cinquenta pessoas. Depois de algumas palavras de acolhidas, meu grupo e eu somos separados do restante apenas de forma visual, a partir de agora começam os detalhes desta inesquecível jornada.

Me foi dado um copinho descartável com um líquido marrom amornado, a pessoa que me deu havia perguntado se essa seria minha primeira vez, afirmei balançando a cabeça. Reparei que o líquido no meu copo parecia mais "aguado" que o dos membros veteranos. A mesma pessoa que me deu o copo teve o cuidado de não tentar explicar exatamente o que viria a acontecer comigo uma vez tomado o chá. Mas fez questão de me dar alguns 'bizus' para me sentir mais confortável durante a experiência. Um deles: caso eu me encontre com qualquer sentimento ou imagem desagradável durante a jornada, devo focar apenas na respiração. Respire, respire e continue respirando. Guardo essa dica repetindo mentalmente algumas vezes e agradeço, mais uma vez gesticulando com a cabeça. Tentei sentir o cheiro da bebida antes de bebê-la, foi como se minhas narinas tivessem levado um coice de mula. Pelo que reparei não fui o único com a sensação. Uma outra pessoa se aproximava com uma bacia cheia de frutas, uvas, pequenos morangos, tangerina em talhadas, amoras e fatias de melão. Peguei algumas amoras e uvas quando a bacia passou próxima, a pessoa pediu que eu aguardasse o sinal para começar o trabalho.

Lembro nitidamente que alguém tocou um sinal como o toque solitário de um sino. Depois do coice olfativo faço como os demais e bebo tampando o nariz e já em seguida já enfio as frutas na boca. Nossa, o gosto é muito amargo e rançoso. Feito isso pego o lençol que trouxe comigo e a esteirinha e me deito. Antes de me cobrir que nem um defunto, vejo que algumas pessoas estão fazendo o mesmo, alguns estão em preguiçosas, outros em cadeiras, mantas e lençóis vão aparecendo. Noto que fizemos um círculo de pessoas no chão sem perceber. Algumas pessoas vem dispondo pequenos baldes ao lado de cada um. Algumas instruções são passadas previamente uma última vez, como a localização dos banheiros, a explicação dos baldes, sobre um exercício de meditação que será proposto no decorrer do encontro. Também é feito um pedido para quem estiver tomando o chá pela primeira vez permanecer onde está mais a vista. São por volta das 20h, estou deitado e começa a serenar lá fora.


Faz alguns minutos, estou deitado, confortável, enrolado da cabeça aos pés (por vontade própria vale dizer), o sereno engrossou e a música indígena se mistura ao som das gotas d'águas. O sons da flauta NAF são relaxantes, sinto-me bem, de um jeito leve, como se estivesse acordando de uma boa noite de sono, mas não estou com sono, é apenas a sensação que posso usar. 

Num piscar de olhos, vejo que algo mudou e não mudou ao mesmo tempo. Estou no mesmo lugar, deitado, está chovendo e a música ainda está tocando, mas não vejo mais ninguém a minha volta. Isso deve ser o que eles chamam de miração, uma alteração da percepção sem perder a realidade. Meus sentidos parecem mais apurados, ouço tudo a minha volta com perfeição, parece que algumas pessoas estão vomitando, outras chorando. Tento me concentrar na minha sensação. 

Uma figura começa a surgir na minha frente, um homem se aproxima. Para meu espanto, sou eu mesmo. Mas estou diferente, pareço mais velho uns dez anos, pálido e deformado, como se estivesse apodrecendo. Nos encaramos, sei que estou de olhos fechados e o lençol continua sobre o meu rosto. O "Outro Eu" começa a falar comigo, é minha voz, posso ouvi-lo (ou ouvir-me?) muito bem. Mas não transcreverei esse diálogo por ser algo muito pessoal. Sinto algumas lagrimas brotarem, aos poucos elas ganham a liberdade em um filete que chega até o ouvido.

Meu "Outro Eu" se foi, tão inacreditável quanto quando chegou. Parece que estou vendo um telão laranja enorme, como cinema com slides. Um sentimento de paz me preenche, vejo o rosto de uma antiga colega do fundamental que nem lembrava mais em minhas memórias, ela sorri e desaparece. Não estou no controle dessas imagens, mas ao mesmo tempo sinto que quero ou preciso vê-las. É estranho, estranho e bom.

Um lampejo trazido pelo sereno que virou chuva invade o lugar, eu descubro rosto e posso ver que algumas pessoas do círculo se recolheram deixando suas esteiras vazias, vejo um dos meus colegas deitados a poucos metros de mim com um sorriso que dá duas voltas na cara, mas reparei que também tinha lagrimas nas bochechas. Um rapaz do outro lado do círculo não parece estar tendo uma boa experiência, sinto que devia ajudá-lo, mas já estão fazendo isso, quatro pessoas o estão acalmando e o lembrando de respirar, ele parece assustado. Nesse momento foco na minha respiração e volto a me cobrir, fecho os olhos. Alguém no Centro começa a leitura de um texto muito interessante, não lembro bem de todas as palavras, mas algo sobre vontade própria, autoconhecimento, não se culpar pelas escolhas e coisas do tipo. Estou relaxado.


Algum tempo se passou depois do texto e anunciam uma nova dose do chá para quem se sentir a vontade. Me disponho a levantar permanecendo sentado sobre a esteira. Uma mulher vem trazendo uma bandeja pelo círculo onde alguns pegam uma nova dose. Estendo o braço e junto com o chá apanho algumas uvas. O rosto da mulher me transmitia a imagem de bondade e gentileza. Agradeço e mais uma vez tomo meu chá e logo após como as uvas, dessa vez uma a uma. Não vejo luz lá fora, apenas algumas velas e lampiões à óleo dentro do salão/oca. Volto a me deitar ao terminar as uvas.

Ouço um dos meus colegas do outro lado chorando, não saberia dizer se por algo bom ou ruim, ele não é o único. Me concentro no por quê estou ali. Minha mente está tranquila, os pensamentos parecem nítidos, claros e quase tangíveis. Vejo a figura de um índio, ele aparece e some. Fiquei com vontade de rir pois pensei "Até o meu Outro Eu foi mais educado". Aos poucos ouço o som da chuva caindo me atrair, estou calmo, sinto que nada mais me preocupa. Uma sensação estranha de "resolvido" começa a me preencher, como se não precisasse mais me preocupar com algumas coisas que julgava serem importantes. Respiro e me concentro na respiração.

Sinto como se estivesse conectado com tudo e com todos ali. Consigo ouvir alguém lá fora limpando as entranhas no melhor estilo "RAUL!", sinto o vento frio acariciar minha pele como um abraço. Apesar de não saber explicar, pareço estar em comunhão com o sítio, suas árvores, animais, pessoas, sua energia. Isso é bom.

Algumas pessoas que haviam se recolhido estão retornando, alguns molhados com respingos da chuva, outros com o lençol usado como uma saia, tanto mulheres como homens. Alguns se deitam e outros se sentam, uma pessoa ao meu lado faz postura de meditação enquanto outra pessoa deita com os joelhos contra o peito.

Vislumbro um pouco do céu lá fora, nuvens escuras, lampejos e raios ao longe. Não tenho noção de que horas são, e para ser franco, eu nem ligo. Me vejo em um campo, com um senhor idoso de rosto simpático. Olhando ao redor eu me curvo em cumprimento, o senhor idoso sorri mostrando as palmas das mãos e deixamos o campo, como se em um elevador invisível. Voo em direção ao vazio, é estranho, não há medo. Ouço uma voz sussurrar na minha consciência em meio ao silêncio, uma voz familiar, quase materna. Vejo uma dança entre contraste e harmonia, uma coisa completando a outra. Meus desejos tomando formas e virando poeira a cada passo desse balé cósmico. Novamente vazio e agora silêncio.

Sinto o meu corpo como se acordasse de um sono pesado e revigorante. Fico com a sensação de que não sou o mesmo, quer dizer, continuo igual, mas um sentimento de que algo está mudado em mim. Percebo agora já bem desperto que está amanhecendo, o vento fresco deixado pela chuva que passou me abraça, a minha volta noto que algumas pessoas já estão levantando, outras apenas se mexem para ficarem sentadas, em comum alguns estão rindo e sorrindo. Me junto aos meus colegas sentando todos lado a lado. Uma pessoa convida aos que se sentirem a vontade para partilhar sua experiência para falar aos que estão ali, ou se preferir, se reunir com quatro pessoas que estão próximos a uma mesa longa para conversar de forma mais restrita. Uma jovem diz que encontrou com um santo, um outro senhor idoso relata que pode desabafar um remorso com seu avó. Algumas outras pessoas fazem relatos de sua experiência, todas parecem terem tido um noite impactante e transformadora. Nenhum do meu grupo diz nada, ficamos apenas nos olhando, mas vejo que no geral estamos todos bem, alguns parecem ter chorado mais do que outros. É oferecido um lanche leve e informado que essa Sessão está encerrada, são feitos agradecimentos e alguns avisos finais de recomendação sobre o que podemos sentir e como proceder. Algumas pessoas agora se cumprimentam, trocam abraços e apertos de mãos. Nos reunimos e seguimos para a Kombi. Noto que um dos colegas do meu grupo ainda parece estar com os olhos lacrimejando.

Já na estrada, contamos uns aos outros nossas experiências. Em comum todos relatamos que sentimos uma sensação de paz e despreocupação, desapego ou alívio sem escala. Sinto que o desafio deve ser manter esse estado metal e emocional de agora em diante. Recordo-me de que fiz alguns planos de o que fazer da minha vida, das minhas relações e o que não fazer mais. A sensação de que uma versão de mim "podre" ficou para trás me preenche. Estranhamente bem, me sinto em paz sentado na Kombi, e por algum motivo começo a meditar a música Balada do Louco como um mantra. Creio que o mais importante agora é manter esse estado de espírito. Sereno, tranquilo e de alguma forma que não sei explicar, mais livre.

FIM

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